Dos cortes de verbas à força coletiva: Histórias de resiliência financeira em tempos turbulentos

Archana Deshpande e Ellen Sprenger, Spring Strategies1
Poderiam existir oportunidades inesperadas em um mundo pós-ajuda?
Em 2024, ficou evidente que a maré estava mudando na ajuda externa: oito governos ricos anunciaram cortes projetados que somam US$ 17,2 bilhões. O desmantelamento abrupto da USAID em 2025, marcou uma aceleração dolorosa e sem precedentes dessa tendência em ascensão.
Esses choques ocorrem em meio às mudanças nas prioridades filantrópicas, ao aprofundamento da desigualdade econômica, à crise mundial das normas democráticas e à proliferação de conflitos armados, que levam as organizações da sociedade civil a lutar pela sua manutenção em contextos cada vez mais voláteis e autoritários. Em um momento em que o mundo precisa urgentemente de seu trabalho, as organizações de direitos e justiça estão lidando com a questão cada vez mais desafiadora de como financiar o trabalho - será que elas devem mudar suas estratégias, reduzir o tamanho, fundir-se com aliados ou considerar o fechamento total?
Para superar esses desafios, as equipes de liderança precisarão pensar de forma mais criativa sobre seus modelos financeiros, mesmo quando a filantropia e outros financiadores reavaliarem o importante papel que ainda desempenham no apoio aos movimentos e na proteção do espaço cívico. Não é a primeira vez que a crise bate às nossas portas. Então, o que podemos aprender com o passado para nos prepararmos para esse futuro incerto?
Esses anos acompanhando centenas de organizações em suas jornadas de resiliência financeira, aprendemos que muitos líderes já estão pensando fora da caixa, em alternativas para reduzir a dependência de subsídios. Neste blog, compartilhamos histórias de três deles.2 Esperamos que essas breves narrativas inspirem e contribuam para uma imaginação coletiva mais dinâmica para o financiamento do trabalho global de justiça social e climática!
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Lucie Doumanian, Social Media Exchange (Libano):
Rompendo o ciclo da crise por meio da transformação na cultura de captação de recursos
“Instabilidade e criste tem sido uma constante no Líbano e, portanto, para qualquer organização sediada nesse país”, diz Lucie Doumanian, ativista feminista de direitos digitais e diretora executiva adjunta da Social Media Exchange (SMEX) do Líbano. Ao defender os direitos digitais em toda a Ásia Ocidental e no norte da África, a equipe operou durante a revolução, a hiperinflação, o colapso do setor bancário, uma explosão portuária devastadora e uma guerra contínua.
Nos últimos anos, uma das primeiras coisas que a SMEX fez em resposta aos controles monetários restritivos no Líbano foi registrar uma entidade legal no exterior para facilitar o recebimento de financiamento internacional. Agora eles operam uma 501(c)(3) nos EUA. “Isso aliviou muito a pressão mental que tínhamos como organização”, lembra Lucie.
Em seguida, ela e sua equipe priorizaram a redução da dependência de duas fundações. Isso significou criar reservas de capital de forma proativa, cultivar uma cultura de prospecção de doadores e analisar os pontos fortes da SMEX de forma diferente. Por exemplo, eles conseguiram aproveitar sua experiência na realização de avaliações de segurança digital como um serviço de geração de renda. Toda a equipe continua envolvida na comunicação com os doadores, na definição rotineira do escopo de novas oportunidades e no mapeamento das tendências de direitos digitais na região, para que possam manter a capacidade de resposta.
As medidas que a SMEX tomou para diversificar seu financiamento (antes muito dependente de doações dos EUA) tornaram-se um amortecedor crucial que atenuou o impacto dos recentes cortes da USAID em apenas 15% de seu orçamento. “Fomos salvos ao procurar não apenas diferentes financiadores, mas também diferentes tipos de financiamento. Temos um projeto e um financiamento básico que é contínuo, e foi isso que nos manteve à tona.”
O que vem a seguir? “Estamos procurando outros parceiros globais relevantes”, diz Lucie. Depois de profundas transformações internas, a SMEX agora está olhando para fora. “Como podemos apoiar uns aos outros? Como podemos trabalhar juntos como um movimento?”
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Isabela Fernandes, Projects Tor (Global):
Manter-se aberto, criativo e disciplinado para aproveitar as “oportunidades unicórnio”
No final de 2018, Isabela Fernandes tornou-se Diretora Executiva do Projeto Tor, uma organização global de direitos digitais que protege os usuários da Internet contra a vigilância e a censura. Logo após assumir essa função, ficou sabendo que a organização só poderia cobrir os salários dos próximos meses, então teve que entrar em ação.
A primeira decisão de Isabela foi fora do convencional: pedir ajuda e ter um diálogo honesto com os doadores sobre a crise de fluxo de caixa. Ela pediu (e recebeu) acesso a treinamentos de captação de recursos para sua equipe. Isso fez com que adotassem uma estratégia de prospecção em “cascata”, segmentando e acompanhando diferentes níveis de doadores, desde a entrada iminente de fundos até parcerias em negociação e com doadores dos sonhos.
Assim como Lucie, Isabela liderou uma abordagem de captação de recursos que permitiu que o Projeto Tor mudasse as coisas rapidamente. Por exemplo, em apenas três dias, a equipe lançou um leilão de NFT em criptomoeda. Após uma rápida pesquisa para identificar uma casa de leilões, entrou em contato com um artista pelas mídias sociais para criar um NFT exclusivo, estabeleceu um processo de colaboração de mútuo benefício com o artista e gerou um burburinho para garantir lances, a equipe arrecadou 500 Ethereum (cerca de US$ 2 milhões). Mais tarde, ao ver um tweet de um filantropo se comprometendo a financiar organizações que trabalham em prol de uma Internet descentralizada, Isabela sugeriu entrar em contato - “para lembrá-lo de que existimos e que também merecemos apoio”, ela ri - e agora essa pessoa é o maior doador individual de recursos.
“Criei uma Equipe Turbinada de Captação de Recursos” com pessoas da área de captação de recursos, programas, finanças e outras áreas da organização, e nos reunimos todas as semanas”, diz Isabela. “Agora estamos diversificando nossos fundos, temos reservas e estamos em uma situação muito melhor.” A agilidade, a habilidade e a disciplina da equipe permitiram que o Projeto Tor criasse um portfólio diversificado para seus fundos que ajudou a diminuir a dependência dos fundos do governo dos EUA para apenas 22% de seu orçamento.
Com a mente aberta, mantendo pulso firme em um ecossistema único e ousando não ser convencionais, Isabela e o Projeto Tor conseguiram aproveitar “oportunidades unicórnio” inesperadas e de alto valor.
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Nersan Govender, The Legal Resources Centre (África do Sul):
Reinventando com foco estratégico e comunicação poderosa
Um mês depois de ingressar na organização jurídica de interesse público The Legal Resources Centre (LRC) em 2018, o Diretor Executivo Nersan Govender descobriu que a instituição sul-africana de 40 anos, com um legado histórico contra o apartheid, estava praticamente falida e todos os financiadores estavam indo embora. A pergunta imediata de Nersan para o conselho, a equipe e os parceiros foi: ainda há necessidade do LRC existir?
A resposta foi um retumbante “sim”, diz ele. Então, ele e a equipe começaram a trabalhar para consertar o que estava quebrado. Nersan concentrou-se em eliminar os silos para alinhar melhor os programas, as operações e as equipes financeiras em torno de objetivos claros. Isso exigiu decisões difíceis para reduzir as funções duplicadas da equipe e otimizar os programas para as áreas mais fortes. A chave para esse processo foi manter a transparência, a estratégia e a proatividade na comunicação de histórias impactantes aos financiadores.
Alguns doadores disseram que financiariam o LRC se a equipe pudesse demonstrar que estava mudando a situação. “Demorou cerca de dezoito meses”, diz Nersan. “Durante esse tempo, aconteceu a pandemia da Covid-19. Estávamos todos confinados e houve crise nos assentamentos informais da África do Sul. O LRC estava no local, arregaçando as mangas e investigando os direitos legais das pessoas nesses assentamentos. Foi quando os doadores realmente perceberam que não estávamos parados. Conseguimos construir nossa resiliência financeira com um trabalho muito focado e dando a todos a confiança de que sabíamos o que estávamos fazendo.”
Embora a organização não tenha sido diretamente afetada pelos recentes cortes na ajuda externa, a equipe da LRC sabe o que é ter que se reinventar quando a crise acontece. Olhando para o futuro, e com base em seus esforços contínuos de diversificação de financiamento, a LRC está cultivando um canal nacional de doações individuais para criar reservas. Também está explorando oportunidades de captação de recursos coletivos, como propostas conjuntas, novas parcerias com organizações com ideias semelhantes nos países do BRICS e colaborações com universidades. Leia mais sobre a jornada do LRC aqui!
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Líderes visionários como Lucie, Isabela e Nersan nos lembram que temos o que é preciso para reimaginar a resiliência financeira em nossas organizações, desde resposta rápida até as adaptações de médio prazo e mudanças de longo prazo. Devido às inovações que empreenderam para diversificar seu financiamento - e à forte colaboração interna que tornou isso possível - essas três organizações estão mais aptas a enfrentar as mudanças que estão por vir na forma como os movimentos de direitos e de justiça serão financiados.
Embora os líderes não possam ignorar a dor que surge quando suas comunidades e seu trabalho estão ameaçados, também não podem ficar congelados ou sobrecarregados. Há uma década, em meio a mudanças no cenário de financiamento, escrevemos sobre como as organizações devem repensar o financiamento de seu trabalho e imaginar um futuro para além da dependência de subsídios. Com compaixão, coragem e criatividade, podemos construir a força coletiva para encontrar inspiração na ruptura e atravessar juntos esses tempos desafiadores.
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Participe de nossa próxima série de conversas, Reimaginando a Resiliência: Sustentando sua missão em um mundo em rápida mudança, dias 8 e 22 de maio de 2025. Vamos nos aprofundar em como as organizações de todo o mundo estão traçando novos rumos para a resiliência, mobilização de recursos, modelos operacionais inovadores e liderança transformadora.
1 Archana Deshpande e Ellen Sprenger são co-CEOs da Spring. Este artigo foi desenvolvido com o apoio de pesquisa de Erin Hohlfelder e com o apoio editorial de Jesse Firempong.
2 Essas histórias foram compartilhadas durante um evento virtual realizado em 25 de março de 2025 em parceria com a Fundação Ford, intitulado “Innovating Together Through Funding Shocks”, que reuniu organizações da sociedade civil de todo o mundo para entender os recentes cortes sem precedentes na ajuda externa e explorar estratégias acionáveis para resiliência financeira.
Abril 25, 2025